Quando o Acaso Cruza Nosso Caminho

Ernest Hemingway escreveu certa vez: “O mundo é um lugar bom e vale a pena lutar.” Concordo com a segunda parte.

William Somerset, Filme Seven, os sete pecados capitais (1995)

Fazer o bem sem olhar a quem!

ditado popular

Sempre gostei de animais, principalmente gatos. Independentes, não precisam de muita ajuda para viver, gostando da liberdade.

Ao contrário do que dizem, gatos não são indiferentes aos donos, demonstrando carinho conforme você se entrega a eles (conforme os cativa, como diria o pequeno príncipe). É uma relação diferente da do cachorro, que parece gostar do dono independente de qualquer coisa. O gato se aproxima quando percebe que você está sozinho e as vezes, assim como os homens, se afasta quando deseja ficar sozinho.

Quando era criança tive 3 gatos e um cachorro, todos em sequência (nunca com mais de um ao mesmo tempo). Morava na periferia de São Paulo e, já nesse tempo, me iterava das maldades que os homens são capazes de cometer com esses seres, muitas vezes inofensivos. Meus 3 gatos não foram castrados e nem havia isso de rede nas janelas, como hoje é conhecido. Eles passeavam por aí e devem ter cruzado com pessoas ruins, que os envenenaram. Os 3 morreram em casa, encontrados no quintal.

O cachorro, por ser maior, tinha mais respeito. Mas acabou sumindo, certa vez.

Eu era muito pequeno e me contaram, em casa, que ele havia sido pego pela carrocinha. Até hoje acho que foi dado, devido ao trabalho que dava (um vira-lata de grande porte).

Os anos se passaram e só voltei a ter um novo bichinho neste ano (2021). Depois de arrumar o apartamento com redes e proteções, adotei um gatinho de 3 meses que, na época, havia sido devolvido a ONG por uma moça que havia acabado de se separar e não o aguentou por ser muito ativo e não gostar de colo.

Vivia muito bem só com ele, gato brincalhão e serelepe, que se tornou meu despertador matutino, até que apareceu um segundo a cerca duas semanas atrás e acabou com qualquer planejamento que eu tivesse nesse mês.

O Causo

Foi numa quinta-feira de chuva.

Trabalho atualmente definindo trajetos para alguns motoboys que fazem entregas e, ao sair a rua vejo que um deles estava com algo estranho nos braços. Um pequeno gatinho branco.

Perguntei o que diabos era aquilo, porque havia trazido um de seus gatos para o trabalho. Ele então me contou que o bichano havia sido jogado para fora de um carro em movimento na avenida Aricanduva e que, logo na sequência, havia sido ricocheteado por outro carro, quebrando a pata.

O animal, amedrontado, se escondeu em baixo de um carro. O motoboy, com pena, parou e ajudou o bichano, o colocando em sua caixa de entregas e o trazendo, sem saber bem ao certo o que fazer com ele. Sua perna estava bamba, quebrada, e seu pelo estava todo sujo e molhado, talvez da chuva, talvez da sujeira da rua. O gato, se aninhava no próprio corpo e, as vezes, dava alguns gemidos de dor. Era pequeno e não devia ter mais que 10 meses de vida, se mostrando muito dócil, ronronando, inclusive, quando acariciado.

Eu, sabendo da dificuldade financeira e de conhecimento do motoboy, me prontifiquei a ajudá-lo. Disse que tentaria achar uma ONG pra ele e combinei de levar numa amiga veterinária no dia seguinte para tentar colocar a pata do bichano no lugar.

Mal sabia eu da cilada em que estava me metendo.

A diferença entre o dizer e o fazer

Uma coisa que sempre percebi nas pessoas é que elas gostam muito de dizer, mas quando aparece a chance do ato ficam amedrontadas e pisam pra trás.

É o religioso que fala da importância de ajudar ao próximo no culto e não faz nenhuma doação aos necessitados nem ajuda ninguém (não tem tempo, nem dinheiro). É o militante que quer guerra mas quando aparece a chance da batalha treme a cueca. É o cara que fala, fala e fala mais um pouco, fala sobre todas as suas virtudes, fala sobre o que faria se […], mas nunca passa disso, nunca aplicou nada, são só virtudes teóricas, que não servem para nada.

Minha vida está bastante estabilizada, eu diria. Mas com o passar do tempo eu fiquei isolado, só trabalhando e ficando em casa. Os amigos, ou casaram ou se isolaram (trabalho corrido e vida sem tempo), não tendo tempo para jogar tanta conversa fora, ou (quando surgia algo) só falando de trabalho, promoções, oportunidades e, vira e mexe, do passado, coisas chatas para passar o tempo.

Eu estava estabilizado, mas sem adrenalina, sem aventuras, na monotonia do cotidiano. Vi na ajuda desse bicho uma chance de dar uma pequena reviravolta, de fazer algo pra ajudar alguém sem defesas (mesmo que um animal), de ser útil pra algo além do trabalho.

Então, no dia seguinte o levei ao veterinário. Já mais limpo (gatos se limpam sozinhos), avaliamos através de um raio-x que o bicho tinha fraturado o fêmur da pata traseira. Seria preciso um procedimento cirúrgico, pois o encaixe não seria tão simples como eu pensei (algo como colocar o osso no lugar com um empurrão kkk). Ele estava com a respiração meio descompassada também, mas, imaginei, deveria ser pelo fato do gato estar com medo e dor. A minha amiga veterinária até aconselhou a fazer um raio-x da região torácica, para ver se estava tudo ok, mas custava mais 150 pilas e eu achei que talvez não fosse necessário.

Fato é que o bicho, no dia seguinte estava respirando um pouco melhor, então fiquei mais despreocupado e foquei na perna, que já estava bastante inchada e, diziam os veterinários, teria que ser operada logo.

A primeira operação

Me deram duas opções. Amputação ou cirurgia ortopédica. A minha amiga conhecia uma cirurgiã que realizava o processo de amputação e cobrava algo em torno de 1,5 k. A cirurgia ortopédica não saia por menos de 4,5k. Outra opção era tentar fazer no serviço público, mas, conhecendo o SUS de algumas vezes que precisei levar colegas sem convênio, não estava disposto a perder tanto tempo em filas, talvez tendo que manter o gato medicado por dias até ser operado.

Resolvi ir pela amputação. Tinha um dinheiro guardado “no coxão” e resolvi ajudar o bichinho. A princípio minha ideia era socorrê-lo, mas sem entrar nas minhas poupanças, só usando esse dinheiro. Eu iria adotá-lo e, por fora, tentaria achar uma ONG para ajudar na adoção, mesmo sabendo da dificuldade de conseguir adotar um animal com 3 pernas.

Ficou marcado de operar o bicho 4 dias adiante. Minha amiga disse que ficaria com ele sem cobrar internação até o procedimento e que eu só precisaria pagar os anestésicos para aliviar a dor e a comida e areia para as necessidades.

Durante a semana, acho, a cirurgiã mostrou para um outro cirurgião conhecido dela que trabalhava na rede pública e ele disse que haveria a possibilidade de não amputar e, como viria realizar um outro procedimento na cidade, conseguiria manter a pata do bicho por 2,3 k. Aceitei e fomos logo para a operação no dia seguinte.

Deu tudo certo, mas aí ocorreu o outro problema.

O problema aparece….

Logo que acabou a cirurgia, o gato ficou com minha colega, mas ela achou que a respiração dele estava muito ruim. Parecia que ele sugava ar e nada vinha. Ficava como que um asmático, com respirações curtas e cortadas.

Fizemos então o bendito do raio-x torácico e o gatinho estava com uma ruptura no diafragma. Eu, não sendo médico nem veterinário, dificilmente saberia explicar o que isso significa do ponto de vista clínico, mas me disseram que era perigoso. O animal precisava ir logo para uma outra intervenção cirúrgica.

Fiquei em choque, pois não sabia muito bem o que fazer, não tinha muito mais dinheiro para cobrir essa operação, daquilo que me dispus a usar, e não queria de forma alguma usar minhas poupanças.

Arrisquei ir no público, pois me disseram que, se o animal estivesse com risco de morte, o procedimento, via de regra, era agilizado.

No mesmo dia me dirigi a uma unidade da Anclivepa em SP. O SUS animal.

O SUS Animal

As Anclivepas funcionam mais ou menos assim: por volta de 4h forma-se uma fila enorme do lado de fora (parece show do Justin Bieber), com todo tipo de gente e seus bichanos. As 7h abrem os portões e distribuem fichas contadas. Quem pegar, pegou. Quem não pegou deve voltar no dia seguinte e tentar novamente. Depois dessas fichas eles só atendem casos emergenciais.

Lá dentro pode-se ver gente de todo tipo. Desde pessoas de classe média que não podem arcar com custos altíssimos de consultas e operações, até mendigos que levam seus bichanos para serem atendidos quando aparentam estar doentes.

A estrutura é simples, com muitas gambiarras e com muita improvisação. Infelizmente, é o que é ofertado pelas prefeituras tanto para gente como para animais, um serviço precário.

O serviço, aparentemente, é feito por médicos, cirurgiões e estagiários e estudantes de pós-graduação em veterinária.

Logo que cheguei, por volta de 14h, me atenderam e me mandaram para uma ala de atendimento. Felizmente, como eu já tinha o raio-x e os exames do felino, não precisei esperar pra fazer tudo de novo e a médica, verificando a gravidade e a necessidade do procedimento, mandou ele pro soro e oxigênio, pediu pra internar ele durante a noite e trazer novamente por volta de 7h para fazer nova avaliação, tomar os medicamentos e operar.

Pelo tipo de serviço, achei até que foi muito rápido. Não sei como funciona para atendimento padrão, mas para emergências foi praticamente imediato. Conversando com pessoas que também estavam por lá, dependendo do procedimento é preciso fazer no particular e trazer o resultado (o ultrassom, por exemplo, estava quebrado e, conhecendo a prefeitura de SP, talvez passe anos sem arrumar).

No dia seguinte voltei, passei pela triagem e fui mandado para a internação. Fiquei de 7h até por volta de 15h esperando, quando o bicho foi chamado.

Logo no início percebi que, devido à dificuldade e quantidade de bichos maltratados pelos outros sendo socorridos, os piores vão primeiro, só atendendo os casos medianos de operação mais tarde, por volta de 17h, quando acabam os atendimentos ao público.

Imagino que, para as equipes de operação deva ser duro, tantos casos e operações por dia. Imagino que tenham que ser muito fortes para aguentar um dia assim (eu mesmo não aguentaria, tenho certeza).

O gato operou e, logo em seguida, internei ele por 12h, para acompanhamento.

Happy ending??

Bem, agora, com o animal se recuperando, resolvi deixá-lo em definitivo em casa. Ele está sendo cuidado pela veterinária até ficar um pouco melhor e poder vir pra casa, e se enturmar com o gato residente.

Os gastos ficaram em torno de 3,5k. Não é muito quando comparamos com outros bichos que operam (já escutei de gente gastando 15k em operações), mas tive ajuda de muita gente que, vendo a situação, ou me deu um desconto ou não cobrou algo.

Nesse período, ainda aglutinaram-se algumas entrevistas de emprego que fiz, que me deixaram meio nervoso e tenso, fazendo com que minha dieta fosse para o espaço.

Acho que definhei um pouco, pois as roupas folgaram e o peso caiu, fiquei fraco e abatido, não treinei. Logo na sequência, quando as coisas melhoraram um pouco, tive um efeito rebote, sentindo muita fome e me deixei levar um pouco.

Tentarei, na próxima semana, ajustar novamente a dieta e ver o estrago, já que parei de pesar comida e o peso quando a coisa começou a apertar.

Esse também é o motivo de eu ter sumido quase 20 dias desse recinto, que venho gostando cada vez mais.

Não vou me glorificar como se tivesse feito algo grande, mudado o mundo. Ajudei um animal indefeso que foi maltratado por outras pessoas com aquilo que eu podia. Não é muito, mas é o que eu podia fazer com os recursos que dispunha no momento.

Isso também me fez refletir um pouco sobre a necessidade de ajudar o próximo de alguma forma, os da nossa espécie mesmo. Talvez fazendo alguma espécie de doação para lugares da própria comunidade de cuidam de gente desamparada e/ou enfermos e deficientes, ou mesmo com trabalho voluntário, vai saber.

Ou, se preferir, ajudar aqueles que cuidam de outros seres, como animais desamparados, com um pouco de ração, por exemplo.

No fim, se todos fizessem o pouco que pudessem fazer, quando esse tipo de coisa esbarrasse em nossos caminhos, talvez o mundo fosse um pouco melhor.

Mas, não vou mentir, não é fácil, e o percurso, via de regra, é dolorido.

Abraços!!

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scant
scant
2 years ago

” 3,5k. ” custo mediano, vale quase um ps4 Pro

bela ação

não cuido de animais irracionais há anos; agora só cuido de racionais (minha mulher)

Scant
Scant
2 years ago
Reply to  Matheus

“Ongs (na comunidade ou fora, um Médico sem fronteiras, por exemplo) ” quando dou esmolas me sinto melhor do que contribuo pra essas ongs.

nada supera olhar no olho do pobre miserento e dar uma merreca ainda q ele/ela gaste tudo em pinga, hehe

abs!

Scant
Scant
2 years ago
Reply to  Matheus

essa ong que vc mencionou até me daria prazer de ajudar pela alegria de ver onde o dinheiro está sendo empregado (ainda que nunca tenhamos acesso a contabilidade, hehe)

“50 pilas no leite nan e dei pra ele. Ele me agradeceu e foi embora, pra casa ou pra vender o leite, só deus sabe.” essa é a melhor parte nesse caso: não sabemos!

acho q aprendi isso com Olavo ou Monir Nasser (não tenho certeza), a esmola não é para o mendigo, é para gente.

é pra gente entender que o dinheiro não vale nada realmente e o mendigo é só um meio pra obter esse fim

Neófito
2 years ago

Cacete, Mago. Que relato.

Tenho sete gatos, atualmente. Tinha seis, mas minha filha gostou de um filhote demais mês passado, que foi jogado aqui perto. Lhe deu logo o nome de Simba. E assim ficamos com ele. Vive apanhando de todos os outros. Mas está gordinho e saudável. E aprendendo a sobreviver entre os demais.

Também estou com uma cadela (“yorkie” lindíssima, puro sangue), presente de grego de minha cunhada que deu pra minha filha quando se separou do marido. Depois reataram, mas a cadela ficou aqui. Carinhosa, só dorme conosco. Mas latido de cachorro é algo que me irrita.

Meus gatos são todos velhos e castrados (até as fêmeas). E castrei a cadela também. Os preços são mesmo até meio que extorsivos, eu diria. E aqui não existe um serviço como esse SUS-Pet daí.

Já fui de gastar muito com tratamento de animais. Hoje em dia, trato como posso em casa e se a morte vier, que venha. Penso que tiveram uma boa vida ao meu lado e lhes darei um enterro digno. Minha última experiência com cobranças de veterinário foi com uma gata de dezessete anos de idade. Tentei salvar de todo jeito e foi grana jogada fora, além de aperreio e perda de tempo.

E tudo isso porque alguém achou legal jogar um filhote de gato do carro em movimento. Tenho pavor da violência contra a animais. Esses dias me repassaram um vídeo de um sujeito torturando um rato. Poderia apenas matar o bicho rapidamente. Mas tem que torturar. Ah povo filho da puta.

Eu dormia com todos os meus gatos antes de minha filha. Hoje, devido a preocupações com saúde dela, não fazemos isso. Mesmo assim, os mais velhos (com dez ou doze anos) ficam batendo na porta do quarto até cansarem. Aí vão dormir noutro lugar.

Abraços!

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