À la Boutique

– Será à la boutique!!

Já não mais enxergava quando fez esse último aviso no silêncio do quarto. A cuidadora, a pouca distância da cama, se alarmou:

– O que será à la boutique?

– O funeral, mulher. O funeral!!

Já era um velho de pouco mais de 100 anos. Vivia no campo desde sempre e já não tinha condições de fazer muita coisa sozinho. Precisava de ajuda para ir ao banheiro, tomar banho e para se deitar.

Se preparassem, ainda conseguia baforar seu cachimbo e sorver sua cachacinha, balançando na rede, de frente para a janela.

Naquele momento, se referia ao funeral, pois sabia que já estava próximo.

– E o que é esse “à la boutique“, velho?

– Furdúncio, bagunça, confusão, uma besteirada. (O velho ria avidamente com seu sorriso banguela, ao dizer lentamente essas palavras)

– Deixa de ser marimbeiro hômi, pensando na morte antes da hora. Vá deitar e fique quietinho!

Depois da reprimenda, o velho se virou na rede e aconchegou a cabeça no travesseiro amarelado pelo tabaco.

Pela janela só se avistavam algumas nuvens e o final do muro construído pelo vizinho. Essa era uma paisagem a qual se acostumara tardiamente, quando, por coincidência, o vizinho aumentara o muro e ele perdera a força das pernas. Agora, o único passante que transitava na janela era o gato, que vez ou outra vinha fazer companhia.

Ao fechar os olhos lembrou de outros tempos. Quando ainda era jovem e cheio de vigor, forte e trabalhador da dura roça nordestina. Os maciços músculos empunhavam a enxada no árduo trabalho sob o sol escaldante.

Lembrou das casas, que eram outras, das pessoas que as habitavam, do trem que antes por ali passava.

Lembrou dos amores, do casamento, dos filhos, que saíram daquela aridez para buscar seus sonhos na cidade grande.

Lembrou também dos netos, que não mais visitavam sua casa por não se acostumarem com o clima e com a aridez do ambiente, (“algo brega esse sertão!!”) alguns só tendo visto por foto.

Fechou os olhos e dormiu. E, no sono, sonhou com um anjo que lhe dizia ser este seu último dia. A morte, atrás, aguardava pelo momento de ceifá-lo deste mundo, mas prometia dá-lo um curto tempo para se preparar.


Acervo pessoal.

No dia seguinte, acordou e contou a cuidadora sobre o sonho. Incrédula com o que ouvia, alarmou:

– De novo com essa estória? Tá avexado pra morrer??

Sorriu!

Pediu, então, para tomar um banho, pois queria se preparar. A cuidadora o banhou, o ajudou a usar o banheiro e o recolocou na rede, onde ficaria até a hora da sopa, que o serviam de praxe no almoço.

Para passar o tempo, a cuidadora o armou com um copinho de pinga (prontamente sorvida) e com o cachimbo.

O velho baforou até onze da manhã. Foi aí quando, de repente, começou a se estribuchar e passou dessa para uma melhor.

A cuidadora, chorando copiosamente, ainda chamou o enfermeiro da cidade, que só confirmou a morte do velho.

Naquele dia, a sopa esfriou em cima do fogão.


A cidade era pacata e pequena. Só corriam duas ruas e uma avenida pelos veios de suas estradas.

Era por uma dessas ruas que seguia o cortejo fúnebre dos moradores em direção ao pequeno e escondido cemitério, para enterrar o velho.

Nos dias anteriores, algumas coisas estranhas haviam ocorrido, fazendo o burburinho aumentar na cidade.

Primeiro, logo após cavarem a cova, caiu uma chuva torrencial, poucas vezes vista por aquelas bandas. Foi tanta água que encheu o buraco, obrigando os coveiros a entrarem com baldes para secar a cova.

Depois, ao sacar a lápide para assentar no túmulo, a pedra se quebrou.

A multidão no cortejo havia sido maior que a esperada, pois muitos estavam ali para tentar presenciar algum fato místico. Nos botecos da cidade já corriam histórias de que o velho havia feito uma macumba, um pacto, visando seu enterro.

Chegando ao cemitério, a procissão parou para ouvir o sermão do padre. Após, era a hora de enterrar o caixão, mas, pasmem, o caixão não coube na cova. De alguma forma a cova havia encolhido ou o caixão alargado.

A multidão começou o burburinho, que foi procedido por uma hora de expansão da cova, que, então, engoliu o casulo de madeira onde o velho jazia para todo o sempre.

Parada em um cantinho, escondido, da procissão e sendo forçada a manter a compostura da situação, a cuidadora oscilava entre o choro da perda e a forte vontade de rir.

Naquele momento, quando a terra era lançada em direção ao caixão, sete palmos abaixo do chão, internamente ela ria, murmurando baixinho:

– Foi à la boutique!! Foi à la boutique, velho!!

O velho, provavelmente, também ria, acima ou em algum outro lugar no espaço-tempo.

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Azarão
Azarão
2 years ago

Bom, muito bom, mesmo!!!
Mas percebo que você anda meio obcecado com anjos : “E, no sono, sonhou com um anjo que lhe dizia ser este seu último dia.”
Só espero que não seja o mesmo anjo da piada, que faria nosso nobre ancião se cagar todo!!!!

Neófito
2 years ago

Olá, Mago!

Belo conto à la boutique! rs

Simples, curto (conto-pílula), insólito e, à sua maneira, cercado de sortilégios…

Da imagem de seu acervo pessoal conheço bem a paisagem.

Espero que venham outros contos.

Abraços!

Neófito
2 years ago
Reply to  Matheus

É uma imagem diferente. Parece mais árida. Esse solo vermelho me lembra região bastante seca com taboa. Mas é tudo “sertão”, no final das contas.
Lembrei agora de Graciliano Ramos: “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes.”
Abraços!

scant
scant
2 years ago

bem legal
o anjo ataca novamente
dá pra colocar seus personagens morando todos nessa cidade onde são assolados por um demônio que finge ser um anjo

abs!

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