A Ladeira da Memória (e algumas feridas que o tempo não cura)

A primeira vez que ouvi falar na ladeira da memória foi a cerca de 3 anos atrás. Durante uma das aulas do COF (Seminário de Filosofia), Olavo de Carvalho citava o livro de um autor até então desconhecido para mim, José Geraldo Vieira. Citava uma passagem onde o autor descrevia, com riqueza e detalhamento, a entrega dos pertences de um baú como presente num cortiço na ladeira da memória. Um contraponto a atual política de sintetizar ao máximo os textos, utilizada nas escolas e suas famosas “redações de 30 linhas”. Talvez esse seja o motivo da morte da poesia e prosa no Brasil, ninguém vê os detalhes (mas vai saber!!!).

Este texto traz um resumo da citada obra de José Geraldo Vieira, a Ladeira da Memória, assim como algumas reflexões minhas, que surgiram durante a leitura. Se não quiser saber o enredo, melhor ler primeiro o livro, pois esse texto terá “ispóiliers”

Mas antes, creio que seja prudente falar um pouco sobre a ladeira (a física) e seu autor (livro).

O Monumento do Piques e o Largo da Ladeira Esquecida

Como bom paulista que sou, pouco conheço da minha cidade. Conheço aquilo que qualquer nova-iorquino conhece daqui, mas saberia dar mais detalhes sobre a torre Eiffel, o Big Ben, ou a torre de Pisa que da maioria dos monumentos daqui (Não seria o caso para todo cidadão de cidade grande, perdido no fluxo diário??).

Sei que isso é uma vergonha, mas vamos continuar. O largo da memória não é diferente. Não o conhecia até a leitura do livro. Próximo a estação Anhangabaú do Metrô, no miolo central da cidade, é atravessado todos os dias por milhares de pessoas, indiferentes a sua presença e significância (me pergunto se já não fiz o mesmo).

O dito largo e seu obelisco com alguns transeuntes. (Crédito: Wikipédia, não achei o autor)

No largo, acessado pela ladeira da memória, se encontra o obelisco dos piques, ladeado por uma figueira-brava que contrasta com as cercanias (cheia de prédios, viadutos). Um oásis da natureza em meio ao caos urbano da maior metrópole da América Latina. Um sobrevivente, literalmente acorrentado (pois havia medo da árvore tombar e a acorrentaram, só retirando as partes dos grilhões não absorvidos pela árvore em 2011).

A árvore, com mais de 100 anos, era utilizada pelos viajantes, em uma época onde São Paulo era só um monte de terras com algumas poucas ruas, para descansar e “pegar uma sombra”, antes de seguir viagem rumo ao vale do Tietê.

Tomando uma sombra antes de seguir viagem!! (Crédito: Coleção de Arte da Cidade / Centro Cultural da Cidade de São Paulo/SMC/PMSP | Foto: Luciana Cristina Ramos Nicolau)

O Obelisco, primeiro monumento da cidade (datado de 1814) foi o primeiro lugar a receber o brasão oficial da cidade (“Não sou conduzido, conduzo”), além de ter um lindo chafariz e um belo painel de azulejos (atualmente, pichado).

“Não sou conduzido, conduzo”, será mesmo?? (Crédito: Reprodução do brasão vencedor publicado no Estadão em 11/3/1917. Acervo/Estadão)

A criação do monumento foi proposta para marcar a cidade, que na época era só vista como local de passagem rumo ao interior. Assim, surgiu o largo, formado da ampliação da ladeira do Piques e da Palha (atual Rua 7 de Abril). O monumento foi erigido pelo mestre Vicentinho em pedra cantaria.

Quanto ao nome do largo, os historiadores não sabem ao certo o motivo, mas acham que, por ter sido feito para eternizar algo, foi tomado de memória.

Hoje, abandonado e esquecido, reflete a presente situação da capital. Sujo e pichado, já foi considerado um dos locais mais perigosos do centro, habitado por todo tipo de malandro, e, durante a noite, moradia de mendigos.

Enfim, a cidade esquece de suas memórias quando as pessoas deixam de valorizar quem são e onde estão.

José Geraldo Vieira, o Escritor de Detalhes (e esquecido!!)

O autor do livro “A Ladeira da Memória” é um desses que os brasileiros esqueceram. Não fosse Olavo para citá-lo, muito provavelmente, jamais o teria lido. Escritor que presa pelos detalhes (as vezes escrevendo páginas inteiras somente detalhando o conteúdo de um baú), foi relegado a ser lido somente por aqueles que esbarram em seus livros aleatoriamente.

Talvez a forma demasiadamente formal de sua escrita seja o motivo de ter sido deixado de lado. (Hoje não queremos ler nada muito difícil, só algo rápido que desça fácil goela abaixo!!!). Seus diálogos, as vezes, são demasiadamente carregados, mas não saberia dizer se antigamente as pessoas conversavam assim para avaliar.

Segundo o Wikipédia, foi um autor conhecido pelo detalhamento urbano em sua prosa. Escritor de diversas virtudes, se aventurou na escrita de poesia, romances, contos, ensaios e críticas literárias. Também exerceu medicina (o que explica o personagem principal do livro ser médico) e ocupou a cadeira de número 39 na Academia Paulista de Letras (nem sabia que isso existia), antes de Monteiro Lobato.

Seu Magnum Opus, cujo enredo desconheço, é “Terreno Baldio”. Foi também coroado como personalidade literária do ano de 1963, angariando o prêmio Jabuti.


O resumo a seguir trata de uma obra esquecida, de um autor esquecido, porém de um assunto vivaz e corrente (pois sendo atemporal, também é eterno),

Seria o tempo suficiente para cicatrizar a dor, ou só a morte é capaz de fazer esquecer o inesquecível?


O Romance da Ladeira

Um romance em meio a uma guerra internacional, uma estória com duas cidades (uma tale of two cities brasileira??). Estas talvez fossem boas propostas de enredo para a Ladeira da Memória, que têm seu início no fim.

O pontapé inicial é dado com Jorge e seu tio Rangel em um trem, que segue para o interior do Rio. Tio Rangel aproveita sua ida para Volta Redonda para acompanhar o sobrinho, que se dirige para a fazenda de Camapuã, nas proximidades de Itatiaia.

Então, Tio Rangel conta a estória do cortiço da Ladeira da Memória, onde sua esposa (Maria Clara) vivia há muito tempo atrás (naquela época o cortiço era uma mansão), antes de São Paulo começar a crescer demasiadamente e seu pai vender a casa, que se tornaria um cortiço velho, cheio de imigrantes e trabalhadores braçais do interior da cidade.

Esta casa havia sido palco do casamento de Rangel, que vê sua mulher inventar de retornar ao casarão para comemorar as bodas de seu casamento, junto aos maltrapilhos que lá viviam.

Aqui começam as alegorias. Dentro da casa é possível sentir as lembranças surgindo diante de Maria Clara, memórias de uma outra época, quando ainda haviam peixes na fonte, então destruída. A lembrança da subida da escadaria, no dia do casamento, agora suja e cheia de gente mal vestida e surrada pela vida difícil. As paredes tem significado para os antigos moradores, mesmo que feitas simplesmente de rochas estavam imbuídas de lembranças.

No final desta primeira passagem, tio Rangel afirma ter subido a Ladeira da Memória, pois ao chegar no topo, tudo que restou foi a lembrança. A imagem da realidade, o cortiço, era real. Mas havia outra, uma fictícia, inapagável, que ficaria em sua mente para sempre.

Sabemos então que Jorge sofre de um grande pesar e seu tio o instiga a subir sua própria ladeira e, então, se virar para frente, deixando as memórias em seu devido lugar, no passado.

Jorge, o Médico Escritor

Jorge é um cara diferenciado, um tipo que nos fizeram acreditar na escola ser o comum de um século atrás.

O personagem principal pertence a uma família aristocrática, teve oportunidade de cursar medicina e de se especializar na Europa (levante a mão se você já viu esse enredo em algum outro livro brasileiro!!). Tem acesso aos mais variados círculos da intelectualidade de uma cidade que, até então, era o berço de quase tudo que ocorria no Brasil, o Rio de Janeiro.

Trabalha como Radiologista. Seu trabalho parece bastante tranquilo e monótono, tendo que atender pacientes aqui e acolá, revelando algumas amostras de raio-x no meio. Em seu escritório mantêm uma máquina de escrever, já que têm um segundo trabalho como escritor, tradutor e analista de livros em jornais.

Até então, Jorge é mais um cara qualquer, fazendo coisas quaisquer, sem muito do que valer uma estória. Um médico bem sucedido que têm um livro publicado, só isso.

Mas existe um detalhe, um detalhe que muda tudo. Jorge é apaixonado por Renata, que, casada, têm um impedimento jurídico no meio de sua paixão (naquela época levavam a sério isso de casamento!!!)

Renata, e o Amor Condenado Pelas Circunstâncias

Renata, um desses poucos e líricos personagens, uma morena inteligente, “de casa”, com cerca de 30 anos de idade, leitora dos mais variados autores e culta como poucas (tão culta que chega a dar raiva as vezes, tamanho o lirismo de suas falas).

É casada com um desembargador do Ministério da Fazenda, que vive em viagens pelo Brasil, deixando sua esposa a “ver navios” em um casarão no Rio de Janeiro.

A solidão de Renata faz com que ela se apaixone por Jorge. Juntos, vivem um romance as escondidas, se encontrando em cinemas e passeios ao interior, em cidades distantes da capital. Conversam sobre livros, música, suas vidas e sobre o mundo, sobre a guerra, as invasões da França, as preocupações de uma possível vitória nazista.

A Ascenção e Queda da Paixão

O ponto alto do romance ocorre quando Jorge e Renata decidem passar um final de semana na tal fazenda Camapuã. Lá vivem o momento mais feliz de um romance: as brincadeiras, as fugas, o empurra-empurra em cachoeiras, os beijos, até chegar ao ápice do amor. O momento mais feliz para Jorge e sua amada, algo que ficará eternizado.

Porém, alguns dias após, ao voltar para a cidade, no meio de uma brincadeira em que Renata provoca Jorge para que a radiografe em seu consultório, Jorge descobre que existe uma grande mancha no pulmão de Renata (Tuberculose). Daí começa a reviravolta.

Jorge, preocupado, pede que Renata visite um médico para saber a respeito. Então começam os tratamentos. O marido, até então no Nordeste (achando que em casa estava tudo ok hahaha), decide voltar e pedir aposentadoria, para poder cuidar de Renata. Não arreda o pé das proximidades de sua cama, fazendo com que Renata fique cada vez mais apreensiva e preocupada. Não pode falar com quem ama, e não quer que o marido descubra seu caso, temendo que ele atendesse e falasse com Jorge, vindo a descobrir.

Pode-se perceber que nem sempre podemos ter aquilo que queremos. Aceitar o fardo, as vezes, é um ato de coragem, já que nem todos podem ser ou ter tudo que almejam. Jorge, após uma conversa com a tia de Renata, Noêmia (que revela o quão pesarosa está a sobrinha), decide vender todas suas posses e viajar para São Paulo, até que Renata melhore e possa pedir divórcio.

Vai para uma cidade chamada Hacrera (que é um nome fictício para Marília), onde consegue um trabalho em uma clínica. Jorge passa praticamente 2 anos, tempo que julga necessário para que Renata se recupere, só trabalhando e escrevendo, sem parar, pouco saindo ou conhecendo outras pessoas ou novos amigos.

Após 2 anos, o trâmite de divórcio de Renata já vai adiantado. Quando volta para o Rio, ela pede que ele espere mais 6 meses, e diz que já se encontra melhor. Depois, por carta, pede outra extensão do prazo, totalizando 3 anos de angústia em uma cidade longínqua daquela onde Jorge realmente gostaria de estar.

Por fim, querendo fazer uma surpresa, Jorge vai para o Rio próximo do final do prazo, só para descobrir que Renata morreu de pesar, pois não conseguiu obter a certidão de divórcio. Morreu a espera de Jorge.

O Ato Final e a Subida da Ladeira

Jorge passa os capítulos finais em um vai e vêm entre Rio-SP, sem saber muito bem o que fazer, já que acredita não haver possibilidade de viver sem Renata. O ato final é a subida de Jorge a Camapuã, sua “ladeira”. Ao chegar vê que nada mais é o mesmo, a fazenda, largada, está como que um mausoléu fantasma. Assim como Maria Clara viu no cortiço, vê ali um passado vivo, mas a realidade é outra, de destruição.


Pequena Reflexão

Esse livro fez uma ideia que eu já tinha pensado antes brotar em minha cabeça novamente. As nossas memórias são muito melhores que a realidade que nos cerca.

O que foi sempre será melhor que o agora, pois recordamos somente das partes boas, esquecendo dos pesares e das dores. O nosso passado é importante por isso, pois ele mostra o percurso que fizemos para chegar ao agora, e ele é sempre contado em forma de estória. E estórias precisam ter uma linearidade, precisam chegar a um fim, diferentemente de nossas vidas, que, sem sentido claro, não têm muito nem fim, nem tampouco começo, já que alguns vivem sem jamais ter vivido e, outros, morrem no meio de suas obras.

Esquecer essas memórias, principalmente as de pesar, é uma tarefa difícil, pois “subir a ladeira da memória” e para baixo olhar é como um trabalho de Sísifo. Chegando no topo, caímos, e dia após dia, semana após semana, voltamos a subir, até o dia derradeiro. Então, outros subirão em nossos lugares, lembrando nossos feitos até o momento final e colocando os seus na sequência.

Além disso, o destino, imparável, mostrou a Jorge (assim como mostra a nós, todos os dias) que não se importa com nossos desejos, nossos sonhos, nossos amores, ele só acontece a cada instante, seguindo caminhos tortos que, para ele, são retos. Como se cada instante, por si só, bastasse.

A realidade é dura pois, o que era garantia, certeza, instantes atrás, se torna improvável logo no instante seguinte. Jorge jamais aceitaria que Renata tinha a tal “mancha”, pois a imagem dela viva era tão presente que ele esqueceu que ela estava enclausurada em um corpo, passível de defeito. Jorge jamais imaginaria que Renata pereceria, assim como nos não imaginamos que nossos pais, nossos amigos, nossos amores, perecerão.

Mas o fim, cedo ou tarde, sempre chega.


Minhas Fotos da Ladeira

Esse resumo havia sido escrito há cerca de três meses.

Estava esperando uma oportunidade de tirar algumas fotos próprias do monumento dos piques para colocar no post.

Entretanto, fui postergando e acabei não indo. Como explico no texto, é muito fácil se pegar preso no vortex que é a vida, com suas mesmices.

Porém, fui ontem ao centro comprar alguns materiais de desenho, e, por ironia do acaso, desci erroneamente na estação Anhangabaú (sendo que deveria descer na República).

Logo que saí e virei a rua, dei de cara com o monumento dos piques. Tirei duas fotos com meu celular, que não é dos melhores.

O Chafariz, todo pichado no topo
O obelisco, olhado de lado, após sair da estação Anhangabaú.

Por ironia do destino, também, as papelarias que frequentava estão capengando vivas. Sem estoque devido as dificuldades de importação e com baixas elevadas no efetivo de trabalho. Os preços galopando alto, dificultando as vendas.

Ver isso me fez lembrar desse livro e desse resumo. Tenho memórias vivas de pegar filas nas mesmas papelarias, de ver os locais lotados. É quase como passar na frente da escola em que primeiro estudamos e ver os muros desmoronando.

No fim, tudo têm um fim, mas é triste vivê-lo.

Abraços!!

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Scant
Scant
2 anos atrás

“As nossas memórias são muito melhores que a realidade que nos cerca.” algumas sim, outras não.

” papelarias que frequentava estão capengando vivas.” natural. o povo, que sustenta toda a economia, não escreve. só usa facebook e a educação + condições socioeconômicas do populacho não melhoram.

Neófito
2 anos atrás

Olá, Mago.

Se fôssemos nos dedicar às indicações de Olavo de Carvalho, precisaríamos de uma vida para isso. Ainda mais para mim, que leio devagar.

Um amigo de infância vem montando uma bela biblioteca com dezenas e dezenas de obras indicadas no decorrer dos anos por Olavo. Garimpa em sebos por edições em bom estado e, além do tempo para ler, também desembolsa boa grana. Gostaria que ele escrevesse um blogue, mas ele é resistente a respeito.

Romance peculiar. Nunca ouvi falar. Fiquei mais focado na Renata safadinha, que encontra uma justificativa para pular a cerca diante do “abandono” do corno, que está pelo Brasil a trabalho, ralando como um trouxa. Para trair, basta qualquer merda.

O título do livro é interessante pela relação com o local e a própria persistência da Memória na trama. Desconheço qualquer obra do autor. Mas deve ter sido um grande autor, sem dúvidas.

Dizem que brasileiro que não tem memória. Concordo em parte. O mundo não tem mais memória, a bem da verdade.

Lugar bonito, mesmo com os azulejos pichados e o abandono do chafariz. Tenho pavor de pichador. Merecem duas latas de spray no rabo para ver se aprendem a conviver em um ambiente menos imundo.

Belo post.

Abraços!

Neófito
2 anos atrás
Reply to  Matheus

Esse meu amigo – chama-se Alex, trabalha no INSS – só compra livros em bom estado. Fecha pequenas coleções, às vezes. Mas nunca compra algo em mau estado. Gasta uma boa grana com isso!
60 livros por ano não rola para mim. Preciso viver!

SCANt
SCANt
2 anos atrás
Reply to  Matheus

“60 livros por ano.” um ser humano pode ler isso tudo por ano, mas duvido que se lembre de muita coisa
no final, ler livros demais em um curto período vira perda de tempo porque não há memorização de longo prazo para tanto.
não é natural

Neófito
2 anos atrás

“mas duvido que se lembre de muita coisa no final”

Bem colocado. Não dá para apreender tanta informação e, mesmo que seja por deleite estético ou intelectual descompromissado, pouca retenção se aproveitará, penso.

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